O Baralho do Crime e a Glamourização do Criminoso: Uma Análise Psicológica e Antropológica

Por Francis Jambeiro

O “baralho do crime” é, talvez, uma das ferramentas mais simbólicas criadas no contexto das políticas públicas de segurança. Concebido como um mecanismo ostensivo para identificar e capturar criminosos, o recurso se tornou um ícone, mas não pelo impacto em prisões ou pela efetividade prática. O que deveria ser uma estratégia de repressão transformou-se, paradoxalmente, em uma ferramenta de glamourização da figura do criminoso, que, longe de se sentir deslegitimado, passa a buscar um lugar de destaque – um “posto” entre os valetes, rainhas e reis das cartas.

Essa problemática não é apenas uma questão prática ou operacional, mas também simbólica e comportamental, exigindo uma análise à luz da psicologia, da antropologia e da sociologia. Afinal, como um instrumento de repressão pode se tornar, inadvertidamente, um estímulo à criminalidade?

A Psicologia da Notoriedade

No campo da psicologia, o desejo de reconhecimento e validação é um dos pilares do comportamento humano. O renomado psicólogo Abraham Maslow, em sua famosa Pirâmide de Necessidades, identificou a estima como uma necessidade básica do ser humano. Essa estima envolve respeito, reconhecimento e status. O criminoso, assim como qualquer indivíduo, busca afirmar-se no espaço em que atua – mesmo que esse espaço seja à margem da sociedade.

Ao aparecer no “baralho do crime”, o indivíduo não é apenas identificado como um foragido; ele é elevado ao status de figura pública. Ele se torna objeto de atenção, seu nome circula, e sua imagem é amplamente divulgada. Para o criminoso, especialmente para aqueles que operam no contexto do crime organizado, isso pode ser interpretado como um símbolo de conquista. Ser um “ás” ou um “rei” no baralho é uma validação simbólica de sua relevância. Essa validação, ainda que negativa aos olhos da sociedade, funciona como um reforço positivo dentro do universo do crime.

O sociólogo Erving Goffman, em sua obra A Representação do Eu na Vida Cotidiana, explica como os indivíduos constroem identidades com base nos papéis que desempenham e no reconhecimento que recebem. O criminoso que aparece no baralho do crime passa a desempenhar o papel de “celebridade marginal”, recebendo validação tanto de seus pares quanto do próprio Estado, que reconhece sua “importância” ao destacá-lo como uma figura digna de atenção.

A Antropologia do Símbolo

Na antropologia, os símbolos são essenciais para a construção de significados dentro de uma cultura. Claude Lévi-Strauss, em sua teoria estruturalista, destacou como os símbolos moldam não apenas a maneira como os indivíduos interpretam o mundo, mas também como interagem com ele. O “baralho do crime”, ao associar criminosos a figuras icônicas como reis, rainhas e coringas, não apenas os identifica, mas os insere em um contexto de poder e autoridade.

Historicamente, os reis e rainhas das cartas de baralho representam não apenas poder, mas também carisma e liderança. Quando o criminoso é associado a esses símbolos, mesmo que de forma não intencional, ele passa a ser visto como alguém que “chegou ao topo” dentro de sua esfera de atuação. Essa narrativa é reforçada dentro das comunidades onde esses criminosos atuam, tornando o baralho um artefato de legitimação, e não de rejeição.

Além disso, o coringa – figura que frequentemente aparece no baralho – carrega em si uma dualidade simbólica. Ele é imprevisível, astuto e, muitas vezes, visto como alguém que desafia as regras do jogo. Ao associar criminosos a essa figura, o baralho reforça a ideia de que eles são mais do que indivíduos comuns: são estrategistas, líderes e, de certa forma, “heróis” de um universo marginal.

Estudos e Evidências

Pesquisadores como Philip Zimbardo, famoso pelo experimento da Prisão de Stanford, já demonstraram como o comportamento humano pode ser moldado por narrativas e símbolos. Zimbardo argumenta que a maneira como aspessoas são tratadas ou representadas influencia diretamente seu comportamento e sua percepção de si mesmas. No caso do “baralho do crime”, a narrativa criada ao redor do criminoso não é de exclusão, mas de relevância, o que pode reforçar ainda mais sua identidade dentro do crime.

Na psiquiatria, estudos sobre transtornos de personalidade antissocial apontam que indivíduos com esse perfil tendem a buscar reconhecimento e validação em contextos desafiadores. Para eles, a inclusão no baralho do crime pode ser vista como uma espécie de “troféu”, um marco de sua trajetória.

Um Instrumento Contraproducente

Apesar de seu objetivo declarado, o “baralho do crime” fracassa em atingir resultados concretos. Não há evidências significativas de que a inclusão de um indivíduo nesse recurso tenha levado diretamente à sua captura. Ao contrário, ele se torna um símbolo de status, um incentivo implícito para que outros busquem o mesmo reconhecimento.

O prejuízo é ainda maior quando consideramos o impacto na sociedade. Ao transformar criminosos em figuras públicas, o baralho contribui para a mitificação dessas pessoas, criando uma narrativa que pode, inadvertidamente, atrair jovens e indivíduos vulneráveis para o universo do crime.

O “baralho do crime” ilustra como políticas públicas mal planejadas podem gerar consequências opostas às pretendidas. Ao ignorar os impactos simbólicos e psicológicos de suas ações, o Estado cria ferramentas que não apenas falham em sua missão, mas reforçam o próprio problema que buscam combater.

É urgente que o debate sobre segurança pública seja pautado por análises interdisciplinares, que integrem criminologia, psicologia e antropologia. Apenas assim será possível desenvolver estratégias que ataquem a criminalidade em sua raiz, sem reforçar os símbolos que a sustentam.

Enquanto o “baralho do crime” continuar a glamourizar a figura do criminoso, ele será mais um exemplo de como o combate ao crime exige muito mais do que medidas ostensivas. Ele exige inteligência, sensibilidade e, acima de tudo, compreensão profunda do comportamento humano e das dinâmicas sociais.

Francis Jambeiro é advogado criminalista e professor universitário do curso de Direito da Unime Anhanguera e da Faculdade Santo Antônio. É mestrando em Criminologia pela Universidade De La Empresa em Montevideu, especialista em Antropologia, Criminologia, Investigação de Cena de Crime, Psicanálise e Programação Neurolinguística. É Graduando em Psicologia e autor do livro “Versos e Reflexões”.

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