O presidente argentino Javier Milei quer convencer a população a colocar em circulação os bilhões de dólares mantidos fora do sistema bancário formal — dinheiro que, historicamente, tem sido escondido pelos argentinos como forma de se proteger da instabilidade econômica e da desvalorização do peso. Com medidas que prometem isenção de punições e mais liberdade para declarar ativos, o governo busca reverter décadas de desconfiança no sistema financeiro do país.

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A metáfora dos “dólares debaixo do colchão” é literal para muitos argentinos. Segundo o Instituto Nacional de Estatística e Censos, aproximadamente US$ 246 bilhões estão fora do sistema bancário — o equivalente a 45% do PIB do país, e bem acima das reservas internacionais do Banco Central, que somam pouco mais de US$ 38 bilhões.
O motivo por trás dessa prática tem raízes profundas. Em 1975, a chamada “Rodrigazo” — um pacote de choque econômico que desvalorizou abruptamente o peso — acentuou a desconfiança na moeda local. Situações como o “Corralito” em 2001, quando o governo bloqueou o acesso a contas bancárias em dólar, agravaram ainda mais a percepção de risco. Desde então, economizar em moeda estrangeira e fora do sistema virou hábito.
“O argentino médio sabe, por experiência própria ou familiar, que o peso não é seguro. Quem guardou em dólares, mesmo em casa, perdeu menos ao longo do tempo”, explica o economista Guido Zack. A prática, no entanto, contribui para uma das maiores fragilidades da economia argentina: a crônica escassez de divisas. Como esses dólares não circulam, não alimentam investimentos, consumo ou reservas cambiais.
Com isso em mente, o governo de Milei lançou um plano que permite a regularização de dólares não declarados, sem necessidade de justificar sua origem. Pessoas físicas poderão usá-los para comprar imóveis de até US$ 43 mil ou aplicar até US$ 85 mil em investimentos bancários, sem enfrentar sanções. A proposta tem como pano de fundo um recente programa de anistia fiscal que já rendeu US$ 22,5 bilhões ao governo e vem na esteira de um novo empréstimo de US$ 20 bilhões do FMI.
“Aqueles que guardaram dólares não são criminosos, são os heróis que vão reconstruir este país”, declarou Milei em abril, durante o Congresso Econômico Argentino. Para o presidente, a medida visa devolver a liberdade aos cidadãos que, no passado, buscaram proteção no mercado informal diante de governos que, segundo ele, “roubaram via imposto inflacionário”.
A mensagem foi reforçada pelo ministro da Economia, Luis Caputo, e pelo porta-voz do governo, Manuel Adorni, que disse em coletiva: “Seus dólares, sua decisão. O que é seu, é seu — sem precisar provar de onde veio.”
Apesar da tentativa de atrair recursos para os bancos, a proposta divide opiniões. Para críticos, o plano pode incentivar ainda mais a informalidade e enfraquecer a cultura de pagamento de impostos. “Parece que quem sempre fez certo é penalizado, e quem escondeu dinheiro, recompensado. Isso pode gerar um efeito contrário ao desejado”, alerta um empresário ouvido pela BBC News Mundo.
Guido Zack reforça essa crítica, lembrando que a informalidade pode minar os esforços de estabilização. “Se o Estado abre mão de rastrear a origem dos fundos, qual será o incentivo para os que cumprem as regras?”.
O Fundo Monetário Internacional, que acompanha de perto as movimentações argentinas, também se posicionou. A porta-voz Julia Kozack disse que qualquer nova medida deve estar alinhada aos compromissos firmados com o FMI, como a promoção da transparência e o combate à lavagem de dinheiro.
A estratégia de Milei retoma tentativas anteriores, feitas por outros governos desde os anos 1980, de repatriar capital informal. A grande incógnita permanece: será que, após tantas frustrações, os argentinos voltarão a confiar nas instituições financeiras — e, mais importante, em sua própria moeda?
Com informações do G1.