Nos últimos anos, um novo movimento literário tem ganhado força no Brasil ao trazer para o centro do debate autores indígenas que escrevem a partir de suas tradições, territórios e experiências. A pesquisadora e escritora Trudruá Dorrico, da etnia Macuxi, destaca que essas vozes não apenas expõem feridas provocadas por séculos de violência colonial, mas também convidam à reflexão sobre outros modos de existência e percepção do mundo.

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Segundo Dorrico, mestra pela Universidade Federal de Rondônia e doutora pela PUC-RS, a ascensão desses escritores está ligada a transformações importantes no país, como a promulgação da Constituição de 1988, que reconheceu a pluralidade étnica do Brasil, e a Lei 11.645/2008, que tornou obrigatória a inclusão da história e cultura indígenas no currículo escolar. A pandemia de Covid-19 também desempenhou papel relevante ao ampliar o alcance digital de autores indígenas, promovendo encontros virtuais com leitores, professores e promotores culturais.
Entre os marcos mais simbólicos desse movimento está a eleição de Ailton Krenak para a Academia Brasileira de Letras em 2023, tornando-se o primeiro indígena a integrar a instituição. Ativista, filósofo e autor de obras como Ideias para adiar o fim do mundo, Krenak é reconhecido por articular reflexões profundas sobre a crise ambiental e o papel dos povos originários na construção de outros futuros possíveis.
A pesquisadora observa que a literatura indígena não se limita a temas folclóricos ou culturais: ela é múltipla e diversa, abordando questões universais como amor, morte, aventuras, pertencimento e espiritualidade. “Esses autores vêm de povos que nunca se divorciaram da terra”, afirma Dorrico, destacando a conexão profunda entre território, oralidade e espiritualidade nas obras.
Entre os nomes que se destacam estão Eliane Potiguara, pioneira na escrita indígena feminina; Daniel Munduruku, duas vezes vencedor do Prêmio Jabuti e organizador da Bibliografia das Publicações Indígenas do Brasil; e Lia Minápoty e Yaguarê Yamã, conhecidos por suas histórias de aventura e ação. Outros autores mencionados por Dorrico incluem Graça Graúna, Roni Wasiry Guará, Edson Kayapó, Cristino Wapichana, Tiago Hakiy, Ytanajé Coelho Cardoso e Auritha Tabajara.
Dorrico também organizou Originárias, uma antologia com contos de escritoras indígenas publicada pela Companhia das Letrinhas, que busca justamente ampliar o acesso às narrativas de mulheres originárias de diferentes biomas brasileiros. Durante seu doutorado, ela mapeou obras de autores indígenas em cinco dos seis biomas do país, evidenciando a amplitude e riqueza dessa produção literária.
Na análise da pesquisadora, a literatura indígena serve como contraponto e diálogo com obras do chamado “indigenismo literário”, produzidas por autores não indígenas, como Iracema e O Guarani, de José de Alencar, e Macunaíma, de Mário de Andrade. Para ela, essas obras se apropriaram de símbolos e valores dos povos originários, mas os retrataram sob a ótica colonizadora e desumanizadora.
Dorrico defende que a literatura indígena amadurece a literatura brasileira ao confrontar silenciamentos históricos e propor outras estéticas e visões de mundo. “Ela discute elementos culturais que ficaram intactos por séculos. É um movimento vivo, plural, e essencial para repensarmos o Brasil”, conclui.
Apesar do avanço, ela aponta a ausência de obras indígenas em exames como o Enem como um dos desafios a superar. “Falta trazer a literatura indígena para as grandes provas, para que mais brasileiros conheçam e respeitem essas vozes que sempre estiveram aqui, resistindo, sonhando e escrevendo.”
Com informações do G1.